Tsunami no Sudeste da Ásia

Um relato bem subjetivo sobre os acontecimentos de 

26 de dezembro de 2004 na Tailândia
 

de Andreas Rydzewski



Hoje é a tarde do dia 28 de dezembro. Sentado no jardim do hotel „Paradise Beach Resort", na ilha Koh Samui, tenho frequentes crises de choro. De alegria, porque Angela e eu estamos vivos ! Mas também porque as imagens terríveis de morte e caos me fazem sentir uma profunda tristeza. Nas últimas 50 horas consegui pensar e reagir, sempre alternadamente, a fim de encontrar a melhor solução para nós. Agora que estamos em um lugar seguro e eu fui medicado, todo o peso cai sobre o meu corpo e os acontecimentos voltam à minha mente. Tudo começou ao despertar no dia 26 de dezembro. 

No dia anterior, voamos de Koh Samui até a ilha de Phuket e em seguida viajamos durante uma hora de táxi em direção ao norte até terra firme em Khao Lak, na província de Phang Nga. Havíamos reservado um bom quarto no hotel „Merlin Resort" numa praia paradisíaca. Nessa manhã, desejávamos jogar golfe no Clube „Tublamu Navy Golf Course". Apos um café no terraço do hotel já às 7 da manhã , uma pessoa do clube veio nos buscar. Parecia que seria um dia quente, sem vento. A alegria de jogar uma volta completa era grande. O campo de golfe esta´ localizado numa área militar administrada por soldados da Marinha, o que é incompreensível para os alemães, mas nada de extraordinário para os tailandeses. Portanto, essa área é protegida por um muro de 2 a 3 metros de altura, o que mais tarde seria decisivo. Os campos de golfe que beiram a praia devem ser sensacionais, foi o que concluí após um passeio no dia da chegada. O check in no clube foi rápido e pudemos deixar nossa mochila com roupas de banho e etc no armário do vestiário, pois depois do golfe planejávamos uma caminhada ao longo da praia quilométrica. Dois caddies homens pegaram nossas sacolas de golfe. Normalmente, os caddies na Tailândia são mulheres, mas provavelmente por ser uma base militar, nesse caso foi diferente.

O campo é plano e bonito, com muitos lagos. Os caddies já foram conosco para o 3. buraco para não precisarmos esperar porque no buraco 1 havia um grupo de 4 golfistas. Assim, nós nao terminaríamos o jogo na pista 18, mas sim na 2. Essa decisão atípica, mas inteligente, foi decisiva para nossas vidas. 

Às 8:20 horas começamos nosso jogo com um resultado médio. Começou a esquentar muito, a Angela para se proteger do sol usava um guarda-chuva/sombrinha, que o caddie segurava enquanto ela jogava. O andamento do jogo foi bom, sem nenhuma espera, até a pista 9, quando encontramos um grupo de jogadores e precisamos esperar pela primeira vez. Felizmente, eles fizeram uma pausa na casinha, assim pudemos ultrapassá-los. A pista 10 beirava o mar, com uma vista maravilhosa da água calma cor de turquesa e da areia branca com coqueiros enormes. A pista 11 era um prolongamento da pista 10 e nosso jogo foi melhorando, o que me deixou bem comigo mesmo e com o mundo. A pista 12, um par 5 com 450 metros de comprimento, ia em direção à terra firme em 90 ° com uma linda vista para as montanhas. No final, no cruzamento de 3 pistas, há um quiosque para uma curta pausa, onde nós compramos bebidas e descansamos na sombra. Nossos caddies já estavam na 13. pista com nossas bolsas de golfe e nos aguardavam. Observávamos o grupo atrás de nós, que estava no meio da pista 12, quando de repente percebemos uma inquietação e ouvimos gritos vindos de longe. Nossos caddies deram um pulo e correram em nossa direção gesticulando. No início, não entendíamos nada, ouvíamos um zumbido grave e os pássaros à nossa volta piavam como loucos. Foi aí que vimos a razão de tudo isso - no início da pista 12, a 450 metros de distância de nós, um rolo de água cinza escuro com alguns metros de altura vinha em nossa direção. Descrente, fixei o olhar por segundos na direção desse fenômeno inconcebível. Meu primeiro pensamento foi: a água vai estragar o campo de golfe e será que poderemos continuar a jogar? Mas rapidamente percebi o perigo e meu cérebro acionou o alarme de nivel máximo, ainda mais porque aquela parede ameaçadora rolava em nossa direção. A mulher do quiosque gritou alto e ainda pegou o dinheiro do caixa, os caddies nos alcançaram e só gritavam "corram, corram, corram" e nos mostravam um caminho, diagonal à onda. Nós então começamos a correr, ainda carregando as bebidas e a Angela ainda segurava sua querida sombrinha fechada. E os caddies ainda puxavam nossas bolsas de golfe atrás deles. O caminho chegava uns 150 metros atrás de um lago meio vazio com cerca de 100 metros de diâmetro. Quando vi esse lago entre nós e a onda, senti uma certa segurança. Já havíamos ultrapassado alguns golfistas não tão esportistas das pistas 6 e 7, e pensei que logo chegaríamos à rua perto da saída. À esquerda e à direita do caminho havia brenhas com árvores e palmeiras, assim podíamos observar a onda. E aí aconteceu algo inconcebível: quando a água entrou no lago, este encheu em questão de segundos e parecia que a onda iria rolar sobre o lago. Eu gritei para a Angela correr mais rápido, mas as nossas forças estavam acabando. De repente, vieram outros golfistas em nossa direção, que gritavam "subam nas árvores"! Talvez 100 metros à nossa frente vinha agora a água, assim este caminho estava fechado. Este foi o momento de tomar a decisão mais certa . Ou trepar numa árvore, ou continuar correndo para longe do perigo. As árvores tinham uns 5 a 7 metros de altura, mas relativamente finas, talvez 15 cm de diâmetro. Não seria possível subir nas palmeiras sem galhos. Do canto do olho, eu via as tentativas das pessoas para subir nas árvores, em pânico, mas os galhos quebravam parcialmente com o peso.

O desespero tomou conta de mim e decidi correr até onde dava. Gritei para a Angela que nós deveríamos correr para longe do perigo pelo mato e que era hora dela se livrar de sua sombrinha. Os arbustos batiam nos nossos rostos e o barulho da onda se tornava cada vez mais alto. O estalar das árvores destruídas atrás de nós indicava uma força sobre humana. Trinta metros adiante chegamos a um muro de 1,80 metros de altura. Hoje consigo calcular a altura, pois precisei me erguer um pouco para ver por cima dele. Atrás havia um pátio com uma barraca de madeira. Angela ainda estava a uns 10 metros atrás de mim. Subi no muro e já estava ajoelhado sobre ele, quando a Angela chegou. A onda, com ainda 1 a 2 metros de altura, estava cerca de 20 ou 30 metros atrás de nós. Dei a mão para a Angela e a puxei com toda a força para cima. Seus gritos "eu nao consigo, eu nao consigo" quase me tiraram do sério e o medo que ela desistisse me deixava desesperado. De alguma forma ela conseguiu chegar ao topo do muro e nós pulamos para o outro lado. Por um ou dois segundos senti um certo alívio, até que com um estrondo o muro foi derrubado pela força da onda. Agora era o momento da sobrevivência. Na nossa frente, a uns 30 metros de distancia, avistamos um outro muro, mais alto e com três fileiras de arame farpado em cima. Corremos em direção a ele e avistamos um monte de areia, que tornou acessivel este obstáculo. Dessa vez levantei a Angela para cima do muro com uma força que só se tem no momento do medo da morte. Com minhas últimas energias consegui tambem chegar ao topo, mas aí minha força motriz não respondia mais e cai no arame farpado, rasgando meu braço e o corpo. Do outro lado do muro havia 2,5 metros até o chao e a Angela gritava que não conseguiria pular. Eu gritava que ela pulasse. O arame farpado entrou na minha carne, mas eu consegui me libertar e cheguei ao outro lado. Na nossa frente havia uma rua asfaltada, que dava para a entrada da área militar. Nós atravessamos o muro externo da área e estávamos a 2 quilometros do mar, como pudemos constatar no dia seguinte. Agora a onda vinha pela direita por essa rua. Parece que conseguiu sair mais rapidamente pela entrada da área militar ou derrubou o muro em algum outro lugar. Então nós corremos para a esquerda em direção à rua principal, quando um tailandês de lambreta veio em nossa direção. Ele ainda não sabia da onda. Aí tudo aconteceu rapidamente. Ele freiou e percebeu o perigo. Pulamos na garupa dele, ele virou e dirigiu rapidamente para longe da onda. Dois quilômetros adiante chegamos a uma rua principal cheia de lojinhas e restaurantes. Nós estávamos em segurança, já que este lugar ficava 10 metros mais alto.

Quando no dia seguinte fomos a esta rua onde pegamos a lambreta, sentimos um gelo. A onda destruiu quilômetros do segundo muro e dezenas de carros que estavam passando por esta rua foram levados como carrinhos de brinquedos até 100 metros floresta adentro. Nós vimos carros totalmente destruídos sobre as árvores a 2 metros de altura. Com certeza ninguém saiu vivo desses carros.

Quando o motorista da lambreta nos deixou na rua principal, ficou claro que eu precisava de um médico, porque o arame farpado enferrujado provocou feridas feias e eu estava sangrando muito. Enquanto isso, juntou um grupo de tailandeses à nossa volta e falavam todos ao mesmo tempo. Minha aparência deixava claro que eu precisava de um médico. Um outro tailandês nos mandou subir na sua lambreta e lá fomos nós. Ainda não se sabia da onda por aqui. 

O motorista da lambreta tinha boa vontade, mas não sabia onde conseguir ajuda de médicos - ele andava de um lado para o outro. Depois de 5 minutos, parou ao lado de um lotação, uma pick-up aberta atrás com duas fileiras de banco, e falou com o motorista. Parece que ele entendeu o que estava acontecendo e nos mandou subir. A viagem durou uns 2 minutos, até chegarmos a um tipo de "posto de primeiros socorros", um tipo quarto com alguns remédios e material de enfaixar. Além disso, havia uma cama velha e acabada, coberta com um plástico azul. Na minha inocência, achei que seria tratado adequadamente aqui e que me dariam as injeções necessárias, que eu precisava urgentemente, contra intoxicação no sangue e infecções, pois ja fazia 12 anos que havia tomado minha última vacina anti-tetânica. 

Angela tentava explicar para a amável mulher do posto o que havia acontecido. Nesse meio tempo, muitos tailandeses curiosos olhavam para o pequeno quarto, mas ninguém entendia inglês. Eu me deitei na cama e a mulher começou a desinfetar as feridas com algodao e tintura de iodo, enquanto a Angela tentava ligar para nosso hotel com o celular dessa "enfermeira" . A idéia era explicar para a recepcionista que eu precisava urgentemente de uma injeção por causa do arame enferrujado,para que ela traduzisse para a enfermeira. Isso se a ligação tivesse funcionado. Tomamos consciência de que neste posto não havia injeções nem antibiótico. Agora o motorista da lotação nos observava preocupado e também discutia com os outros. Quando as feridas foram desinfetadas, todos foram da opinião que um hospital de verdade seria útil. 

Novamente subimos na lotação e nos mostraram que iriam nos levar ao hospital na próxima cidade chamada Thai Muang. Angela pagou ainda 3 Euros pelo tratamento. Os tailandeses, além de uma amabilidade incrível, ainda possuem dom de negociar - mais dois passageiros subiram na caçamba e partimos. Durante os 20 minutos de viagem, ficou claro pela primeira vez para mim que nos salvamos da morte por questão de segundos e que os golfistas atrás de nós mal devem ter sobrevivido. Nós pagamos um preço exagerado ao taxista e descemos junto ao hospital. 

Imagine o hospital assim: uma construção térrea, aberto na frente e atrás (na Tailândia todas as casas, restaurantes, hotéis são abertos, sem paredes) com um quarto de 20 m². Quando entramos neste ambiente, nossa respiração parou. Por todos os lados havia pessoas gemendo, gritando, cobertas de sangue, com machucados, algumas sentadas, outras em pé, outras deitadas. Algumas estavam em estado de choque, pálidas e com olhar sem expressao, enquanto outras chamavam por seus familiares. Eram talvez 50 feridos que a enfermeira cuidava e reinava um caos aparentemente sem qualquer organização. Depois de alguns minutos, conseguimos falar com uma enfermeira e mostrar meus ferimentos. Ela nos deu uma garrafa de iodo e nos explicou que nós deveríamos nos tratar. Perguntamos por um médico, ela respondeu em inglês que não havia, mas que logo chegaria um. Nesse meio tempo,a cada 30 segundos chegavam carros e caminhonetes trazendo pessoas gravemente feridas. Não havia ambulância, somente carros particulares. Entre os feridos estavam também mortos, que então foram cobertos com panos. Ao nosso lado estava um alemão, que chorava desesperado e segurava a mão de sua mulher morta. Aí chegou um caminhão com mais feridos e duas crianças mortas. Em questão de meia hora o hospital, assim como o jardim, ficou cheio com 200 feridos e mortos. Ainda não havia qualquer sinal de médico. 

Percebemos que aqui não iríamos receber ajuda, ainda mais que meus leves ferimentos comparados com o que estávamos vendo, não nos dava o direito de exigir um tratamento. Entre os menos feridos foram trocadas informações sobre a tragédia e percebemos então o vulto da catástrofe. A cada um que chegava e podia conversar, perguntavam onde estava, o que viu e como sobreviveu a catástrofe. As pessoas contavam histórias inacreditáveis. Alguns nos contaram que antes da onda, o mar ficou seco por algumas centenas de metros e os peixes pulavam no seco, depois de minutos uma onda de 10 metros veio em velocidade tempestuosa até a praia. Algumas crianças ainda tentaram levar os peixes de volta ao mar. Outros contavam como foram carregados centenas de metros até terra firme e como ficaram minutos debaixo da água. É necessário visualizar a massa de água que carregou árvores enormes, destroços, pedras e tudo aquilo que estava no caminho, causando assim ferimentos terríveis nas pessoas. 

Depois de mais ou menos uma hora, decidimos deixar o local, já que aqui não receberíamos ajuda e a visão das pessoas que chegavam se tornava insuportável. Mães choravam pelos filhos desaparecidos e crianças pelos pais. Ainda não havia médicos, mas vários tailandeses da região ajudavam e tentavam prestar primeiros socorros. A chegada de feridos aumentava, a maior parte eram estrangeiros. Nós estávamos parados na rua e pensando se deveríamos tentar um taxi para Phuket, pois lá deveria haver um hospital maior e melhor. Neste momento parou um carro com um motorista tailandês, que acabava de trazer feridos para o hospital, e perguntou se poderia nos ajudar. Nós perguntamos se ele poderia nos levar para o hospital de Phuket, ele respondeu com um inglês com muito sotaque que ele ouviu no radio que a situação em Phuket tambem era grave e não faria sentido irmos para lá. Nós pensamos rapidamente e decidimos primeiramente irmos para nosso hotel. O tailandês, que se chamava Somporn, nos disse que nosso hotel ficava no caminhho dele, mas que também foi destruído. Nós poderíamos ir com ele e ficar no resort, onde estaríamos seguros, pois localizava-se num monte acima do mar. 

Aceitamos rapidamente e ficamos felizes com sua caridade. Fomos então novamente pela rua da praia, que segue entre 500 metros e 5 km paralela ao mar, em direção ao norte, e pela primeira vez vimos o grau da destruição. Sempre que a rua chegava a menos de 1 km da costa, árvores, destroços e sucata de carros fechavam o caminhho, dificultando nossa passagem. A rua de nosso hotel fica a uns 600 metros da praia e o acesso estava coberto com muita lama - por aqui não poderíamos chegar ao nosso hotel. Um cadáver de mulher estava no meio da rua. A água deve ter tido tal força, que os carros foram carregados por uma centena de metros... Eu podia avistar a entrada do nosso hotel, que ficava numa encosta, por entre as poucas árvores que restaram. Como este não parecia ter sido destruído, tinha quase certeza de que nosso quarto, que estava localizado em uma parte um pouco mais alta, não foi afetado. Mas para chegar a pé era impossível, pois destroços de casas, lamaçal e árvores caídas cobriam a passagem da rua até o hotel. Ao lado do nosso hotel, havia alguns bangalows com um restaurante de praia, onde ainda comemos no dia anterior. Não se via mais nada. 

Seguimos então mais 3 km pela rua em direção ao norte e chegamos ao Khao Lak Nature Resort, que está localizado a uns 50 m acima do nível do mar. Nosso motorista, o dono desse resort simples, mas muito bem localizado, explicou que nos levaria a um hospital maior a 40 km de lá, no interior, onde eu teria maior chance de receber ajuda. No Nature Resort outros feridos se salvaram, já que o local oferecia segurança. Outros feridos entraram no carro e lá fomos nós. Angela, que tinha as feridas mais leves dentre todos os passageiros, acomodou-se na caçamba. Após 40 minutos chegamos no hospital em Phan Nga. Tivemos que desembarcar na entrada de carros, pois era impossível passar devido a grande quantidade de carros chegando com feridos. Parecia que aqui havia realmente uma organização melhor - já na entrada cada ferido recebia um cartão amarrado no pulso, onde a enfermeira escrevia um número e a gravidade do caso, que variava entre morto e apto para receber alta. Cada paciente escrevia seu próprio nome e nacionalidade. Os cartôes foram provavelmente previstos para um caso de uma catástrofe como essa e possibilitavam pelo menos um registro de cada caso.

Nosso motorista foi novamente embora para transportar outros feridos e combinamos que ele viria nos buscar às 15:30 hs. Também nesse hospital havia uma sala enorme, onde pelo menos 50 pessoas eram tratadas ao mesmo tempo e como as portas estavam abertas, podíamos ver tudo. Como ainda não estava na minha vez, ficamos conversando na frente do hospital e ouvimos historias comoventes. Alguém teve a idéia de organizar uma lista com nomes de acordo com o país de origem , para entregar depois às respectivas embaixadas. Após o otimismo de ser tratado aqui, desapareceu a esperança, já que pessoas gravemente feridas eram trazidas, e estas tinham prioridade. Angela tentou achar na regiao uma farmácia para comprar injeção e medicamentos - tentativa sem sucesso, pois de acordo com a informação que recebemos, esses produtos só podiam ser adquiridos no hospital. Uma tailandesa muito solícita levou a Angela à farmácia de lambreta. Por ser uma passageira inexperiente, ela se queimou no escapamento e voltou com uma bolha de queimadura. 

Nosso motorista Somporn voltou ao hospital antes da hora e prontamente ajudou a cuidar dos feridos. Muitas pessoas chegaram em estado de choque, com corpos cheios de cortes e feridas. Depois de analisar a situação, ficou claro para nós que não receberíamos ajuda nas próximas 24 horas e resolvemos voltar com Somporn para seu resort. Agora era hora de comunicar a alguém da família que estávamos vivos. Já que meu celular estava no cofre do Hotel Merlin, Somporn ofereceu o seu e depois de muitas tentativas, conseguimos falar com minha mãe. A ligação caiu várias vezes, mas nós ainda pedimos que avisasse a família da Angela.

Somporn, que somente o céu pode ter enviado, comprou no caminho algo para nós comermos (também yakult, que bebi de novo depois de uns 30 anos) e enchemos o carro com comida e velas, já que na costa o fornecimento de luz e água não funcionava. Nós ainda fizemos um desvio até o hospital Thai Muang para ver se havia feridos que pudéssemos levar ao resort. Na frente desse hospital havia agora centenas de feridos e um pouco ao lado vimos dezenas de cadáveres, que estavam aguardando identificação. Não sabemos como Somporn conseguiu organizar uma caixa com iodo e material de ligaduras (enfaixar, etc), mas isso foi muito útil mais tarde. Nós três partimos então para o „Nature Resort" e no caminhho, Somporn ainda cobriu um cadáver à beira da rua com um cobertor e nós chegamos às 16:30 no resort. 

Neste meio tempo, chegaram outros turistas "sem teto" e, com ajuda de um fogão a gás, a esposa e filho do Somporn cozinharam arroz, omelete e frango(comi novamente ketchup depois de uns 25 anos). Depois que meus ferimentos foram tratados com iodo e enfaixados, comemos e trocamos informações, que são muito importantes em situação como essa para se tomar a decisão certa, embora às vezes seja complicado diferenciar boatos de fatos. Por exemplo, alguém contou que a ponte para a ilha de Phuket e o aeroporto foram destruídos - mais tarde descobrimos que isso não era verdade. Depois de termos nos alimentado, queríamos ir de qualquer jeito ao nosso hotel, já que lá estavam nossos passaportes, etc. Sabíamos que passaporte, dinheiro, cartão de crédito e celular seriam essenciais para seguirmos caminho. Como nós não teríamos chance alguma de chegar ao hotel a pé, pedimos mais uma vez ajuda ao nosso anfitrião (e anjo). Ele não hesitou e lá fomos nós. Ele conhecia um caminho pela mata, que ia da rua da costa por um monte localizado acima do hotel, onde a onda não havia chegado. Como eu imaginei, a parte superior do hotel não havia sido atingida e nós entramos no local abandonado. Por todo canto, vimos manchas de sangue e vestígios de uma fuga frenética. Só o dono do hotel com dois ajudantes estavam lá, carregando um caminhão com alimentos. Ele nos contou que os bungalows na praia foram totalmente destruídos e que hóspedes morreram. Todos os sobreviventes foram evacuados e estavam nas casas dos funcionários. Ele permitiu que fôssemos rapidamente ao nosso quarto para pegar o necessário. Nosso alívio foi indescritível quando encontramos nosso quarto intacto e pegamos nossos documentos. Juntamos algumas peças de roupa e deixamos o hotel.

No Nature Resort chegavam cada vez mais "refugiados", que perderam tudo, já que o tsunami destruiu totalmente muitas casas. Nós ficamos em uma cabana vazia e nos sentamos no escuro à luz de velas com um casal suiço comendo biscoitos conseguidos em algum lugar. Infelizmente minhas feridas não paravam de sangrar e o curativo estava encharcado. Então fui com nosso vizinho de cabana ao centro do resort, onde dezenas de pessoas se instalaram no chão do restaurante. Quando trocávamos o meu curativo à luz de velas, inesperadamente apareceu uma jovem enfermeira alemã, que trocou o curativo com mais profissionalismo. E mais uma vez meu anjo da guarda apareceu, pois esta enfermeira tinha na sua bagagem uma caixa de antibióticos, que ela me entregou sem hesitar. Isso iria me proteger inicialmente e um pouco da minha tensão diminuiu.

Nós tivemos sorte por ter uma cabana só para nós e tentamos descansar durante a noite. Não podia nem pensar em dormir, pois as imagens terríveis do dia não me deixavam em paz. Além disso, eu tentava planejar o dia seguinte. Era óbvio que deveríamos ir embora daqui o mais rapidamente possível, pois o fornecimente de água e alimentos poderia ficar escasso e conseguir um médico aqui seria impossível. Também o perigo de epidemia aumentava, já que o recolhimento dos mortos ainda não havia sido organizado. Como a linha dos celulares não funcionava, só poderíamos resolver a situação pessoalmente.

Com o clarear do dia nos levantamos e a Angela foi checar a situação na entrada do resort. Ela voltou com a notícia de que um carro estava indo ao aeroporot de Phuket, a estrada estava transitável novamente. Nós decidimos ir junto imediatamente para ver a situação do aeroporto.

Chegando lá, ficamos perplexos - o setor de embarque estava lotadíssimo e em frente ao balcão de tickets havia uma multidão. Num balcão descobrimos que todos os vôos para Bangkok estavam lotados e os vôos especias eram destinados para pessoas que perderam tudo e / ou que estivessem gravemente feridas. Já que na primeira semana de férias nós vimos uma infraestrutura ótima em Koh Samui e lembramos de ter visto um hospital com boa aparência, decidimos pegar um vôo para lá. Infelizmente, essa tentativa também não deu certo, pois a maior parte dos aviões foi reservada para Bangkok, os dois vôos restantes estavam lotados pelos próximos dois dias e a lista de espera era muito longa. A próxima idéia foi alugar um carro e dirigir os 1.000 km até Bangkok. As locadoras ficam a 500 metros do aeroporto e lá fomos nós checar cada uma delas. Na Budget e National não havia mais carro disponível, Hertz alugava carros somente para Phuket, sem a possibilidade de devolvermos em outro lugar. Eles tinham um jipe com caçamba, dois lugares, que poderíamos devolver fora de Phuket. Nós agradecemos e recusamos, já que uma viagem de 1.000 km com um carro assim não seria nada agradável. O que deveríamos fazer então? De repente, estávamos frente a um mapa da Tailândia numa das locadoras. Eu já havia falado para a Angela que a cidade Surat Thani na costa leste não era tão longe e lá com certeza haveria uma infra-estrutura adequada, além disse eu li que de lá havia balsa para Samui. Como o maremoto aconteceu no Oceano Índico e afetou a costa oeste da Tailândia, tínhamos certeza de que na costa leste não havia efeito nenhum da catástrofe. Calculamos uns 250 km até Surat Thani e que poderíamos fazer esse trecho com o jipe ainda hoje. A decisão estava tomada. A locadora exigia uma locação de no mínimo 7 dias. Nós concordamos e, graças à Deus, pudemos apresentar passaporte, carteira de habilitação internacional e cartão de crédito. Sem isso não nos alugariam um carro.

O jipe andou melhor do que eu imaginava e logo me acostumei a dirigir à direita e mudar marcha com a mão esquerda. No caminho para Khao Lak, ainda paramos no hotel Marriot (este pedaço da ilha não foi tão afetado pelo tsunami) e tomamos café da manha às 11 horas. Realmente o hotel funcionava de forma quase normal. Vimos alguma destruição na praia, mas o prédio principal estava intacto. Durante o café da manha, discutimos sobre os próximos passos. Foi chocante ver como a vida luxuosa continuava aqui, enquanto lá fora havia caos e morte. 

Continuamos nossa viagem para o norte por cerca de uma hora, parando primeiramente no local da nossa fuga. Eu tinha uma pequena esperança de que parte do clube de golfe ainda estaria de pé, onde deixamos nossa mochila com algumas coisas, inclusive meu óculos escuros com lente de grau. Queria também saber se haveria chances de reavermos nossos tacos de golfe. Quando chegamos na rua da área militar, vimos o local onde a onda também destruiu o segundo muro. A água não só destuiu o muro, como também continuou por cerca de 200 metros, destruindo tudo mais pelo caminho. Se nós não tivéssemos pulado o segundo muro, estaríamos mortos em questão de segundos pela água, árvores e destroços. Depois de uns 150 metros, chegamos na entrada principal da área militar, que é vigiada por militares. Nós descrevemos nossa situação e dissemos, que queríamos rapidamente olhar se nossa mochila estava por lá e mostramos a chave do armário. Disseram-nos que tudo estava destruído, que não sobrou nada do clube e não poderíamos de jeito algum entrar. Vimos de longe que realmente o campo de golfe estava irreconhecível e achei que estavam retirando os mortos - compreensivelmente não queriam espectadores. 

Continuamos então para nosso hotel e usamos o caminho de pedras que já conheciamos. Nesse momento, o jipe foi providencial, pois com um carro comum não seria possível. Quando paramos frente ao hotel, a situação era mais angustiante do que no dia anterior, não havia ninguém por lá. 

Nós nos apressamos em arrumar nossas malas e quando voltamos ao lobby, lá estava uma funcionária, que ficou muito surpresa ao nos ver - o caminho oficial do hotel estava bloqueado, pois começaram a retirar os mortos. Foi um pouco estranho, quando ela nos apresentou uma conta de uma cerveja do dia anterior - é, a vida continua.

Nossa próxima parada foi no ‘Nature Resort’, nosso retiro do dia anterior. Angela arrumou nossas coisas da cabana, enquanto eu estudava o mapa e achei um plano da balsa para a ilha Samui. A última seria às 18 horas, assim teríamos 4 horas e meia. Na despedida nós queríamos pagar pelo menos pela noite, mas isso foi recusado enfaticamente pelo nosso ‘anjo’. A solicitude e caridade dessa família foi impressionante e para nós uma experiência importante e maravilhosa.

Partimos, então, com o jipe em direção leste, observando uma paradisíaca paisagem verdejante, com montanhas. No caminho, vinham sempre caminhões carregados com maquinários para salvamento. A viagem foi sem dificuldades e chegamos ao porto 40 minutos antes da última balsa. Durante a passagem para Samui, a sensação era estranha. Como nosso celular voltou a funcionar, depois de uns 7 telefonemas, a Angela conseguiu um quarto livre num bom hotel. Nós pensamos que uma estada na praia seria a melhor terapia para trabalhar essa experiência traumática. Aproveitamos os 75 minutos de viagem para fazer algumas ligações para familiares e vimos pela primeira vez na televisão da balsa os estragos que esse maremoto causou no sul da Ásia. Quando se vê as imagens na Indonésia e Sri Lanka, a Tailândia foi a que se saiu ‚melhor’. 

Chegamos ao hotel às 8 da noite, e sentimos alívio quando vimos que nosso quarto ficava longe da praia e no primeiro andar. Depois de um bom banho e um jantar tailandês no jardim do hotel, adormecemos exaustos. Na manhã seguinte fomos ao Bangkok Samui Hospital e fomos tratados com toda a atenção e profissionalismo. Minhas feridas foram limpas, desinfetadas e enfaixadas. Depois de exatamente 48 horas dos ferimentos, recebi enfim duas injeções contra envenenamento do sangue e antitetânica. Agora saiu o último peso dos meus ombros e poderíamos continuar nossa vida normalmente, já que consideramos o dia 26 de dezembro de 2004 como nossa segunda data de nascimento. Tenho certeza de que depois desta experiência a forma de exergar a vida muda e, no futuro, verei muitos problemas com outros olhos. 

Na província de Phang Nga, onde estávamos e que foi a mais atingida na Tailândia, haviam achado 3.950 mortos até 31 de dezembro, dos quais 2.210 estrangeiros. A identificação completa ainda vai demorar meses. Nessa província ainda faltam encontrar 958 turistas. Mais de 80% das casas dos habitantes, assim como hotéis, foram destruídos pela onda.

Adendo

Minha intenção era escrever essa experiência para mim mesmo, como a vivemos, para que pudesse entender melhor porque reagi assim e para trabalhar emocionalmente os acontecimentos. Quando mostrei o texto para a Angela, foi ela quem me convenceu a dividir este milagre e meus sentimentos com pessoas próximas a nós.

Considerando o tamanho indescritível desta catástrofe natural, que causou tanto sofrimento para milhares de pessoas, nós somos gratos a Deus e ao destino, pois saímos relativamente ilesos da catástrofe. As feridas físicas vão sarar logo, enquanto as emocionais poderão ocupar nossas mentes por algum tempo.
 


 
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